domingo, 16 de agosto de 2009

Outro artigo de António Magalhães, Universidade do Porto, Portugal

«O Estado em rede»

As novas classes médias?reclamam uma escola que lhes permita manter uma posição de distinção e uma passagem confortável dos seus filhos para o mundo do trabalho. Explicadores, escolas particulares, férias culturais, sofisticados aparelhos informáticos, etc., pagos a peso de ouro, nada têm de romântico.

No segundo volume da sua já clássica trilogia (A Era da Informação: Economia, Sociedade e Cultura), Manuel Castells analisa a mudança da natureza do estado a partir do conceito de rede. Diz ele que embora os estados-nação continuem a existir, são, e serão cada vez mais, ?nódulos de uma rede mais ampla de poder? (1997: 304), no sentido em que os estados-nação têm vindo a perder nas últimas décadas a sua soberania ao mesmo tempo que têm mantido a sua capacidade de tomar decisões através da sua conexão em redes fundadas em fluxos de informação e conhecimento. Contudo, o facto de os estados-nação fazerem parte de uma rede de poderes (assim como de contrapoderes) faz com que sejam sempre dependentes de um sistema mais amplo de autoridade e influência.
Num mundo globalizado, existe uma tendência para alguns estados e nações se reconfigurarem com base numa identidade nacional (o caso das nações do Reino Unido, do estado espanhol, da ex-Jugoslávia). Todavia, outro tipo de identidades pode inspirar esse mesmo processo. Por exemplo, Mary Kalder (investigadora inglesa) sugere que a Europa pode ser uma espécie de associação organizada em torno de temas, como os direitos humanos, o livre movimento de pessoas e bens, a defesa do meio ambiente, etc.
A nós parece-nos importante atentar na reconfiguração dos estados a partir da perspectiva de Martin Carnoy. Este autor adianta a hipótese de o estado se redefinir através da intervenção ao nível da educação, funcionando esta já não como um sistema de selecção para colocar os indivíduos num mercado de trabalho estável e hierarquizado (vulgarmente designado como ?fordista?), no sentido em que os lugares que o constituem eram mais ou menos fixos, mas como um sistema de formação ao longo da vida em que o desenvolvimento das identidades ocupa um lugar central. A educação para a ocupação de lugares bem definidos na estrutura ocupacional partia, directa ou indirectamente, da estrutura disciplinar do conhecimento e da sua contextualização escolar. A educação ao longo da vida de que fala Carnoy parece visar o apoio ao processo de desenvolvimento identitário dos indivíduos, baseando-se, portanto, num outro tipo de conhecimento, um conhecimento que torna as pessoas competentes para circularem no mercado de trabalho reestruturado pelo capitalismo informacional, como lhe chama Castells.
Na nossa última contribuição falávamos da ?escola reclamada?. É evidente que esta reclamação não é um fenómeno romântico no qual as identidades e culturas oprimidas reclamam a sua visibilidade social. As novas classes médias, por exemplo, reclamam uma escola que lhes permita manter uma posição de distinção e uma passagem confortável dos seus filhos para o mundo do trabalho. Explicadores, escolas particulares, férias culturais, sofisticados aparelhos informáticos, etc., pagos a peso de ouro, nada têm de romântico. Todavia, esta possibilidade de reclamação da escola a partir dos desígnios identitários dos indivíduos e dos grupos introduz importantes matizados aos projectos educativos actuais. Mesmo os grupos minoritários parecem ter aí interessantes campos de acção ? veja-se, por exemplo, o projecto dos grupos ?gay? para a abertura de uma escola em Nova Iorque para pessoas com essa identidade sexual.
Ao mesmo tempo que o estado em rede se consolida como estrutura política de base, este tipo de educação parece estar a contribuir para uma redefinição do que é a dimensão pública da escola. A rede, fundada em fluxos de informação e de conhecimento, activa não só a privatização das necessidades educativas, como torna, de certo modo, mais públicas as necessidades educativas específicas dos diferentes grupos e das diferentes identidades individuais. Não se trata de fazer o elogio da fragmentação da educação em projectos incomensuráveis, mas de enfatizar o facto de a escola, e a educação em geral, estar a ser colocada nos guiões e nos projectos pessoais e grupais mais do que o contrário. O projecto da escola para todos, tal como foi desenhado no âmbito do projecto da modernidade e implementado de ?cima para baixo? pelo aparelho estatal, parece efectivamente estar a desenvolver-se de ?baixo para cima?, quer dizer, a partir dos interesses, projectos e vontades dos indivíduos e dos grupos. Neste sentido, o ?estado em rede? e a ?escola reclamada? são ao mesmo tempo um conjunto de ameaças e de oportunidades. Ameaças, porque o risco é o da condenação dos cidadãos a tornarem-se definitivamente indivíduos (esvaziando, assim, qualquer política educativa e/ou social); oportunidades, porque permitem colocar a educação nos projectos ?glocais? dos indivíduos e dos grupos. A ?escola reclamada?, assim, parece encontrar-se entre a pressão da universalidade da escola para todos e a particularidade das necessidades e dos projectos reflexivos dos cidadãos, portanto, como um campo de importantes possibilidades de agência política.

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