sábado, 12 de dezembro de 2009

Resposta à Valter Pomar, da direção nacional do PT


No último dia 30 de novembro, a revista eletrônica IHU-Unisinos publicou minha entrevista a respeito da transformação dos movimentos sociais em organizações. No último dia 11, Valter Pomar, dirigente nacional do PT, publicou na mesma revista eletrônica, a réplica à minha entrevista. Acabo de redigir a minha tréplica e socializo no blog:

RESPOSTA À VALTER POMAR
Rudá Ricci
A entrevista que concedi à IHUon-Line gerou uma repercussão muito maior do que esperava, o que foi uma grata surpresa. Recebi mensagem, para citar um exemplo, de membros da Cáritas Brasileira, informando das discussões que geraram no último encontro nacional da entidade, em Recife. Também repercutiu positivamente entre pastorais sociais, em especial, a CPT. E, agora, recebo a réplica de Valter Pomar, que conheci nos encontros de formação organizados pelo pai dele, na região do Paraíso, em São Paulo, quando ainda era menino, mas demonstrava grande cultura marxista. Estamos conversando entre intelectuais, portanto, apesar de Pomar parecer carregar algum ressentimento em relação a esta condição. Mas debate intelectual se faz com idéias e não personalizando motivações pessoais.
Vamos ao debate:
1) O principal argumento que ele apresenta é a comparação que faço entre os anos 80 e os dias atuais. Não há nada de estranho neste expediente. No marxismo, encontramos até hoje comparações históricas que chegaram a gerar conceitos que não eram intenção original, como é o caso do conceito de bonapartismo;
2) O que procurava, sinteticamente, sugerir, é que nos anos 80 tivemos movimentos sociais emergindo em profusão e que minguaram ao longo dos anos 90. O conceito de movimento social é ACADÊMICO. Pomar não pode desconsiderar que foi criado no século XIX para nomear movimentos de contestação. Foi utilizado pelos estudos judiciários da França e Rússia. O melhor balanço teórico sobre o conceito que temos no Brasil é o de Maria da Glória Gohn. Basta acessá-lo para compreender o conceito em toda fauna intelectual que o produziu e o desenvolveu desde aquele século em que teve origem. O fato é que não temos movimentos sociais como define o conceito. E nome, como sabemos, se relaciona com um significado histórico. Podemos tentar chamar Paulo de Joaquim, mas dificilmente ele atenderá, porque não se reconhece neste nome. Pomar poderá desejar o que quiser como conteúdo para o conceito de movimento social, mas ninguém conseguirá compreender o conceito porque ele possui história. Como intelectual, Pomar deveria saber deste fenômeno: ao entrar no debate acadêmico, deve esquecer os expedientes de debate partidário. São campos distintos;
3) Não há beco sem saída. Mas, também, não há saída pronta ou requentada. A sociedade encontra suas saídas, a despeito das tentativas de direção de consciências de intelectuais e dirigentes políticos. Foi assim no surgimento dos movimentos sociais dos anos 80 e está sendo assim, neste momento. Não sou otimista inveterado. Sou sociólogo e analiso a dinâmica social. O jogo de palavras utilizado por Pomar revela certa inconsistência. Se digo que movimentos sociais se tornaram organizações (outro conceito histórico e caro à sociologia) não os confundo com partidos políticos. O problema dos partidos contemporâneos é muito mais grave que os dos movimentos sociais e organizações populares: eles não conseguem mais representar o cotidiano porque se tornaram empresariais. O PT é um exemplo cabal desta situação, se americanizando a ponto do marketing falar mais alto que os conteúdos programáticos. Mas este é outro tema de importância fundamental a ser explorado em outra reflexão;
4 Infelizmente, Pomar se aproxima do que denominamos de sofisma: ele parte de uma interpretação errada do que digo e constrói uma arquitetura de argumentos a partir de um erro inicial. Demonstrando que sua interpretação estava equivocada, parece-me que toda seu desenvolvimento se compromete;
5) Vejamos um exemplo: Pomar revela desconhecer a diferença básica entre movimento social e organização. Confunde o ato de se organizar com o conceito de organização (não se trata de verbo, de ação). Organização é um conceito que foi desenvolvido desde o início do século XX. Significa uma estrutura formal, com hierarquia fixa, com corpo administrativo, com funções estabelecidas entre seus membros (porta-voz, por exemplo), entre outras características. Sociologicamente significa uma dinâmica absolutamente distinta da de um movimento social. Uma ilustração para tornar mais didática esta diferença: um movimento social toma decisões em plenárias, através dos expedientes de democracia direta. Porque, não havendo hierarquia funcional rígida, todos são iguais, ou seja, apóiam-se no conceito de “cidadão total” rousseauniano. Uma organização, por ter hierarquia fixa, toma decisões em arenas e instâncias fechadas, formais, envolvendo poucos membros (os membros da direção);
6) Na prática, esta distinção definiu uma mudança política e ideológica das mais importantes no Brasil dos anos 80 para cá: as organizações, que um dia foram movimentos sociais, disputam verbas e receitas para sua estabilidade. Uma hierarquia funcional e um corpo administrativo exigem estabilidade de receitas e o custo é altíssimo. Algo que é muito inferior em movimentos sociais. Ocorre que o Estado está oferecendo esses recursos já que as fontes financiadoras externas, desde os anos 90, minguaram. Aqui percebemos o fundo das diferenças políticas com a réplica de Pomar: minha análise desvenda uma relação politicamente perigosa do governo federal com várias organizações populares, uma ruptura nítida com o ideário petista. Ao não compreender esta dinâmica perversa, Pomar joga água no moinho da tutela estatal sobre organizações populares. Talvez, não por interesse ou desejo expresso, mas por desconhecimento e falta de análise sobre o fenômeno;
7) O uso do conceito de dialética utilizado por Pomar parece uma espécie de “pó de pirlimpimpim”. Leandro Konder já nos alertou para o uso positivista e mecânico deste conceito entre parte das esquerdas brasileiras (que ele nomeia em seu livro). Não se trata de uma evolução (é este o sentido do uso de dialética na réplica de Pomar), mas de mudança de estrutura e paradigma. Mudança. Foi uma opção política e não uma evolução. Muito menos dialética interna. A década de 90, em especial a segunda metade, foi significativa na mudança de percurso do PT e afetou diretamente várias dessas organizações. Cito a CUT, por exemplo, que desmontou as estruturas de departamentos de categoriais, paralela à estrutura confederativa oficial, o abandono das organizações de base (OLT), o enquadramento das escolas sindicais. Eu participei de reunião, durante congresso da CONTAG, em que lideranças partidárias da esquerda definiram a chapa única em virtude das eleições de 1994 (estavam presentes Miguel Arraes, Roberto Freire, lideranças do DNTR e PT). Este é um dos fatos concretos que definem esta mudança de rumo. Opção política, não dialética, fundada numa profunda e vertiginosa partidarização dos movimentos sociais, oposto do que se pregava nos documentos originais de fundação do PT e dos discursos de lideranças de movimentos sociais dos anos 80;
8) Pomar parece desconhecer que os mecanismos clássicos de tomada de decisões dos movimentos sociais não existem ou são marginais nas organizações populares. Conheço de perto estas organizações e poderíamos debater esta mudança em outra oportunidade, com fartura de ilustrações. Que fique claro: não estou citando rituais de CONSULTA às bases, mas de processos de TOMADA DE DECISÃO;
9) Novamente, num exercício de sofisma, Pomar confunde o papel da ORGANIZAÇÃO Igreja Católica, com a expressão ORGANIZATIVA das populações atendidas pelo trabalho pastoral vinculado à Teologia da Libertação. Não existe correspondência alguma. Tanto que Leonardo Boff foi expulso da organização. E sempre foi um expoente da Teologia da Libertação. Por aí já se demonstra a diferença política. Como dirigente nacional do PT, Pomar tem a obrigação de saber desta distinção;
10) O déficit de elaboração teórica dos movimentos sociais dos anos 80 é bem nítido: centravam-se no ideário do comunitarismo cristão. Aliás, ideário reforçado pela leitura da Bíblia como orientador de modelo organizativo e de reivindicações (em especial, o Êxodo) que se apóia na sociabilidade rural, modelo adotado pelas CEBs. O comunitarismo cristão é uma fonte rica de construção da unidade e da identidade social pela diferença (“eu sou, como você, um marginal”), mas não auxilia na construção de uma interpretação sobre a sociedade complexa. Porque gera uma mera dicotomia entre marginais e poderosos. Pomar deve se lembrar de como até mesmo parlamentares de esquerda eram rechaçados em manifestações dos anos 80, como “membros das estruturas burguesas”. Muitas cartilhas daquela época adotavam parábolas e analogias simplistas sobre o funcionamento da sociedade, como uma interessante história de patos e galinhas, onde os poderosos ficavam na parte de cima do poleiro. Esta deficiência teórica e analítica impediu o salto de elaboração para construção de um projeto político nos anos 90. Os movimentos sociais, em sua quase totalidade, não conseguiram impor uma nova proposta de institucionalidade. O máximo que se atingiu foram os mecanismos de participação (e não efetivo controle social) institucional inscritos na Constituição de 1988;
11) Novamente, Pomar confunde conceitos ao procurar interpretar a “hegemonia” do neoliberalismo. Hegemonia é cimento social, capacidade de direção da totalidade ou maioria das classes e segmentos sociais. Eu lamento esta pauperização analítica de denominar tudo de neoliberalismo, uma pauta programática das mais pobres, que nem seus elaboradores a aceitam mais. Lamento porque folcloriza a análise, perde a noção de dinâmica política que altera elaborações e formulações dos sujeitos políticos. Pomar comete o mesmo erro em relação ao conceito de organização e dialética. Empobrece e reduz os conceitos. No caso do neoliberalismo, possivelmente por desconhecimento de Pomar a respeito do conteúdo do social-liberalismo e da Nova Política Pública anglo-saxônica (que no Brasil ganhou a denominação de Estado Gerencial). O que um mero intelectual pode sugerir ao dirigente partidário e intelectual? Só me resta o óbvio: estude;
12) Finalmente, solicito que Pomar nomeie a “certa intelectualidade” e a que não é “tão certa intelectualidade”. Afirmações genéricas não auxiliam a identificação do leitor. Ao contrário, pairam como uma espécie de alerta e colocam todos intelectuais sob suspeição. Neste caso, sobrariam.... os dirigentes partidários. Não se trata de um expediente dos mais novos. Expediente que já foi adotado por “parte da esquerda”, aquela de origem soviética e stalinista. Perceba que nomeio a esquerda, porque faço parte de uma esquerda que rejeitou o stalinismo desde sempre e que, por este motivo, fundou o PT. E é esta esquerda que procura, pelo campo das idéias, discutir o modo lulista de governar, que completa a modernização conservadora iniciada por Vargas. Em defesa da autonomia da organização social e da sua não partidarização, como correia de transmissão.

2 comentários:

Unknown disse...

Prof. Ruda Ricci, novamente, tenho que elogiar suas análises. Me fez pensar muito a mesma através desta tréplica. Eu sou um filiado petista, mas - como estudante de História, futuro acadêmico - temos que refletir muito acerca da nossa "natureza". Não se pode forçar, quando estivermos propondo análisar um "fenômeno" qualquer - a favor de um quésito ideológico. É preciso separar textos, artigos, dôssies e opiniões academicistas das plenárias, istó o Valter vai ter que melhorar, praticar o seu exercício epistemológico. A propósito: posso lhe propor um convite? Gostaria que escrevesse um texto a cerca do Lulismo e o chamado "Modernismo Conservador", presente nas idéias do Werneck Viana. Obrigado!

Rudá Ricci disse...

Caro Marquim,
Eu estou escrevendo um livro sobre o lulismo como conclusão da modernização conservadora iniciada por Vargas.