quarta-feira, 21 de dezembro de 2011

Leitura obrigatória: entrevista de Lúcio Rennó (Valor Econômico)

Confesso que discordo de vários pontos da entrevista de Lúcio Rennó publicada no Valor Econômico de hoje. Contudo, trata-se de leitura obrigatória para quem se interessa pela política brasileira. Reproduzo na íntegra:


'Crise tende a mudar eixo do governo'

Por Cristian Klein | De São Paulo
Ana Paula Paiva/Valor  Lúcio Rennó: "É um governo de boa implementação e funcionamento de programas, que se originam dentro do Executivo e dependem de dinheiro. Se não têm, precisam repensar"
A crise financeira internacional, caso se agrave em 2012, poderá deslocar o principal eixo sob o qual está assentada a administração da presidente Dilma Rousseff. A estratégia, forjada na era Lula, de promover um governo de programas de alto retorno eleitoral em vez de um governo de reformas por vezes desgastantes - como foi o de Fernando Henrique Cardoso - estará numa encruzilhada. Essa é a previsão do cientista político e pesquisador da Universidade de Brasília, Lúcio Rennó, convidado pelo Valor a traçar um panorama sobre como será o segundo ano de Dilma Rousseff na Presidência. Rennó vislumbra a possibilidade de um aumento da agenda legislativa do governo. A lógica é simples: diante de um cenário de escassez de recursos, Dilma será tentada a mudar a direção da nau. Sem dinheiro para formular e implementar programas sociais e de infraestrutura custosos - mas que dão autonomia ao Executivo, pois independem de aprovação no Congresso, como o PAC e o Bolsa Família -, a presidente poderá se voltar para uma atuação focada no Legislativo. É a chance de um contexto mais favorável, por exemplo, à reforma tributária. Por outro lado, com menos recursos para projetos rentáveis eleitoralmente e mais fricção com a base, Dilma corre o risco de enfrentar situação desfavorável para um eventual plano de reeleição. A crise econômica associada a uma candidatura alternativa, urdida pacientemente pelo governador de Pernambuco, Eduardo Campos (PSB), dá margem a uma terceira via com potencial maior que em anos anteriores. A seguir, os principais trechos da entrevista:
Valor: O ano de 2011 foi marcado pela queda inédita de sete ministros em seis meses. Podemos esperar mais turbulência?
Lúcio Rennó: Uma dimensão do governo Dilma é a instabilidade no ministério. Isso repercutiu de alguma forma na relação com o Legislativo, no gerenciamento da base, principalmente no segundo trimestre, marcado pela crise que levou à queda do [ex-ministro da Casa Civil, Antonio] Palocci e afetou a votação do Código Florestal. Prova disso é o índice de disciplina ao encaminhamento do líder do governo [nas votações da Câmara]. Ele foi de 97% no primeiro trimestre e caiu para 88% no segundo. Dilma é a única presidente que teve uma variação negativa no segundo trimestre do primeiro ano de mandato. Seu período de lua de mel depois da eleição acabou mais rapidamente do que os de Fernando Henrique (em 1995 e 1999) e Lula (em 2003 e 2007).
É provável que o grau de autonomia dos ministros em relação ao governo possa diminuir no próximo ano
Valor: É um prenúncio de mais problemas em 2012?
Rennó: Há uma oscilação muito grande. Compromete, mas não inviabiliza, porque os índices de apoio ainda são muito altos. Um segundo aspecto é que o governo Dilma investe muito na formulação e na implementação de políticas públicas dentro do próprio Executivo. Foram diversos os programas lançados aliados à manutenção dos programas anteriores e que tinham se mostrado muito eficientes, no que tange à avaliação popular. Dilma continuou investindo nessa estratégia de governo que talvez dê menos destaque para a aprovação de reformas profundas dentro do Congresso e adote uma iniciativa direta por meio do Executivo.
Valor: É um governo mais de programas do que de reformas?
Rennó: Perfeitamente. É uma forma boa de caracterizar o governo Dilma. Na Presidência e no Planejamento, há o monitoramento desses programas, que é o que Dilma realmente implantou no governo Lula pós-mensalão e que deu muito certo e resultou em índices de popularidade altíssimos do governo. Porque tinha programas muito eficientes, muito bem gerenciados, com medidas de avaliação, de impacto. Ela mantém esse perfil.
Valor: Podemos dizer isso em relação ao PAC?
Rennó: Acredito que sim. Óbvio que o PAC tem uma magnitude maior; então você escuta mais ruído, mas claramente é um programa-chave para o governo e que é muito centrado no Executivo. Tem muito pouco o que ser discutido ou negociado com o Parlamento. Depende muito mais da relação com as cortes do Judiciário e com o Tribunal de Contas da União. Dilma mantém essa trajetória de programas que se originam dentro do Executivo e visam atenuar questões de desigualdade social, de pobreza e de investimento em infraestrutura.
O que se vê agora é a construção de uma terceira via moderada, feita dentro da base com muito cuidado
Valor: Ela mantém essa fórmula do Lula.
Rennó: É a fórmula dela e da qual ela participa muito ativamente quando assume a Casa Civil. Essa é a cara dela. É nisso que ela é boa. É acompanhar e cobrar resultados. Qual é o calcanhar de Aquiles? Você precisa ter um Estado bem financiado e, obviamente, esse foi um ano difícil para o governo, de contenção, devido ao cenário internacional instável e negativo. Aconteceram cortes de investimentos, algo que ela havia dito que não faria.
Valor: Ela disse que não faria o ajuste fiscal.
Rennó: Houve, não há menor dúvida. Isso pode ter uma repercussão maior no governo dela no futuro do que o gerenciamento da coalizão no Congresso.
Valor: A escassez de dinheiro causará mais instabilidade do que os conflitos políticos?
Rennó: Acredito que sim. Porque é um governo voltado para programas, portanto depende da capacidade de financiamento por meio de recursos públicos do Estado. O governo depende muito desse tipo de flexibilidade de gasto proporcionado pela DRU [Desvinculação de Receitas da União]. Se você tem um governo com menos dinheiro, o projeto sofre, porque é muito centrado no Executivo.
Valor: Será difícil manter a base unida nas eleições municipais?
Rennó: A relação com o Legislativo não é tão importante quanto o funcionamento desses programas para o projeto de poder do PT no governo Dilma. A relação com o Legislativo é secundária em virtude da implementação desses programas, que surgem dentro do Executivo e que ele mesmo toca. Se a crise se agravar e o governo não recuperar a capacidade de investimento, precisará repensar suas estratégias de como se posiciona para a sociedade. O primeiro mandato do governo Fernando Henrique foi claramente reformista, com PECs [Propostas de Emenda Constitucional], coisa que os governos Lula e Dilma não se propõem a fazer de forma convincente. A reforma tributária ainda está aí para ser discutida; reforma política, nem pensar. Não é um governo de reformas legislativas relevantes. É um governo de boa implementação e funcionamento de programas, que dependem de dinheiro. Se não têm, precisam repensar.
Valor: A presidente poderia apontar seu foco para uma agenda legislativa maior?
Rennó: Poderia. O impacto das crises internacionais tem sido menor para a população. Mas sem recursos, o Executivo fica numa encruzilhada. Seria uma coisa nova o governo tentar uma agenda legislativa maior. Os custos destas decisões seriam menores por exemplo que um Bolsa Família ou o PAC 2. Pode ser neste caminho - que eu acho difícil por conta da trajetória e do legado recente do PT. Outra opção é o aumento da transparência.
Valor: Ganha força, com a crise, a reforma tributária?
Rennó: Sim, pois está associada claramente a essa questão fiscal, de como lidar com a crise. Em 2008 e 2009, anos de turbulência, o governo fez diversos ajustes pontuais nos nossos impostos, diminuía IPI, tudo por medida provisória. A estratégia do governo já não é mais tratá-la como uma PEC, mas por mudanças menores, com lei ordinária. É uma estratégia relativamente coerente, inteligente, porque de fato é um tema muito controverso. De qualquer forma, não acho que será a preocupação do governo em 2012.
Valor: É um governo sem projeto claro?
Rennó: Não, tem um projeto, que é essa boa implementação de políticas públicas desenvolvidas no Executivo, que tem impactos claros nas vidas das pessoas. Esse programa de combate ao crack, por exemplo, tem ganho um espaço maior, apesar de ter sido negado no começo como um problema sério. Agora é reconhecido como epidemia.
Valor: Dilma começará a dar uma marca a seu governo ou será puramente continuidade?
Rennó: Não terá e não sei por que esperar que se tenha uma marca tão clara, porque é obviamente um governo de continuidade. A marca é do partido, do governo, do qual ela pertencia antes ativamente.
Valor: O governo FHC se notabilizou pela estabilidade econômica e o de Lula pela área social. Dilma entrará na história apenas como uma continuísta?
Rennó: Sim, e isso não é ruim. Ela foi eleita para dar continuidade a um projeto que teve sucesso durante dois mandatos. O que Dilma poderia se diferenciar? Ela pode aproveitar essas crises de corrupção que ocorreram - já tem feito esse esforço - e se colocar muito claramente a favor de uma ampliação da transparência. As últimas medidas dela vão todas nessa direção, como a Lei de Acesso à Informação e a abertura por meio de decreto - logo, sem passar pelo Congresso - de acesso ao público a todos os dados orçamentários. FHC também fez muitos esforços nesse sentido: a Lei de Responsabilidade Fiscal talvez seja um dos principais exemplos. Mas ela está retomando um pouco disso. É um tipo de posicionamento que interessa muito à classe média: transparência, combate à corrupção, resgata conceitos que eram importantes para o PT e que o partido perdeu um pouco, com os escândalos recorrentes do período Lula.
Valor: Mesmo com as denúncias de corrupção, Dilma ocupa o espaço da oposição e lhe rouba a bandeira da ética.
Rennó: Sim, embora tudo que aconteceu nesse ano, o controle de qualidade, não foi por iniciativa do Executivo. Ela reage, como foi Lula depois de 2006. Pode ser que Dilma caminhe na direção de impor essa marca.
Valor: O que explica tantos escândalos e a queda inédita de sete ministros em prazo tão curto?
Rennó: A Dilma pode estar pagando agora o preço da criação dos feudos partidários. O [Carlos] Lupi [ex-ministro do Trabalho] estava desde o primeiro mandato do Lula. O PCdoB, no Ministério dos Esportes, a mesma coisa. Tem a ver com essas escolhas que ocorreram no governo Lula, de delegar um ministério para diferentes membros da coalizão e dar autonomia para esse partido. O que pode ter acontecido na negociação do Lula com a base aliada é uma divisão de tarefas. O PT mantém a essência do governo, os projetos principais, dá pouca margem de influência aos partidos da base, e ao mesmo tempo, diz: "Olha, isso aqui é seu. Não é carta branca completa, mas vou intervir o mínimo possível na forma como você administra isso". Se tiver dando resultados errados, vai ter algum tipo de punição, mas, veja, em todas as punições que Dilma tem adotado, ela não muda isso, não quebra. As punições são pessoais, não são para o partido. Jamais há ruptura desse pacto.
Valor: Qual o impacto dessa sangria ministerial?
Rennó: Pouco no que diz respeito à popularidade. E o governo parece ter se recuperado depois do segundo trimestre horroroso, começa a se estruturar melhor [no Congresso]. Para o ano que vem, tudo depende da cara dessa reforma ministerial que virá.
Valor: Como ela vai ser feita?
Rennó: Não devemos esperar mudanças muito profundas no que tange aos partidos que ocupam os ministérios. E não veremos também o compartilhamento de ministérios.
Valor: As taxas de apoio devem aumentar?
Rennó: No terceiro trimestre, o índice de disciplina subiu para 90%. Ainda não temos os do quarto, mas em 2012 deve se manter nesses patamares mais elevados. Na segunda metade no ano, continuamos tendo problemas sérios com ministros, de diferentes partidos, e as taxas não caíram como foi no caso do Palocci.
Valor: A base já se acostumou ao estilo Dilma?
Rennó: A base se acomodou. Há um ajustamento, uma definição mais clara sobre quem são seus interlocutores. Isso era uma confusão no começo do ano. Não imagino que uma eventual queda do Fernando Pimentel [ministro do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior] vá resultar numa situação como foi a do Palocci. Mas a saída seria complicada para o governo.
Valor: Em termos administrativos ou simbólicos, por ser um amigo da presidente?
Rennó: As duas coisas. Ele tem um papel importante dentro desse projeto de investir em desenvolvimento e infraestrutura por meio de programas, como um conselheiro importante da Dilma. E simbólico, justamente por esses fatores. É uma figura-chave deste governo, como era Palocci.
Valor: Lula fortaleceu instituições que davam assento a diferentes atores da sociedade, como o Conselhão, para se chegar a decisões por meio do confronto de ideias. Dilma, por sua vez, parece confiar mais na meritocracia. Nomeou o empresário Jorge Gerdau para presidir a Câmara de Políticas de Gestão, Desempenho e Competitividade. Isso torna o governo mais tecnocrático?
Rennó: É um ótimo ponto. Tendo a concordar com ele. No governo Lula, o Executivo se abriu muito para a sociedade civil. É impressionante a quantidade de conferências nacionais que aconteceram sobre diferentes temáticas, como a que culminou na polêmica sobre direitos humanos. No primeiro ano de Dilma, não vemos esse mesmo padrão de ativismo. O processo decisório é mais tecnocrático mesmo. Mais centrado em poucas pessoas e que tomam mais decisões.
Valor: Ao não punir os partidos, Dilma gera uma expectativa de que haja mais escândalos pela frente?
Rennó: Nos ministérios que ainda não foram afetados, existe sim essa possibilidade. Agora, imagino que o governo vá investir bastante para evitar esses escândalos por meio de uma melhora geral do controle sobre o funcionamento desses ministérios. Provavelmente, o grau de autonomia desses ministros em relação ao governo possa diminuir.
Valor: O governo pode sair menor das eleições municipais?
Rennó: O reflexo da economia nacional na eleição para prefeito existe mas não é tão grande quanto os fatores locais.
Valor: Nas capitais a situação nacional tende a ter um peso maior.
Rennó: Sim, fica mais claro o efeito da popularidade do presidente e da situação da economia.
Valor: Em São Paulo, Lula conseguirá transferir votos para Fernando Haddad como fez com Dilma?
Rennó: Será um cenário diferente. Ele não é mais o presidente, está distante dos holofotes e doente. Há um debate interessante sobre o lulismo. Mas, para mim, o que existe é boa avaliação de governo.
Valor: Para alguns, o mensalão surgiu a partir de um contexto muito competitivo de eleição municipal, no qual o PT, recém-chegado ao governo federal, foi levado a disputar e obter financiamento em regiões onde nunca concorrera. Há perspectiva de o mensalão se repetir?
Rennó: Não, as regras sobre financiamento de campanha vêm evoluindo. O candidato tem que prestar conta em momentos diferentes da campanha. O dados mostram um aumento grande no total de recursos arrecadados, o que tem a ver com transformar caixa dois em caixa um. Não é aumento de custo.
Valor: O PSB é o partido que mais cresce em número de prefeituras. Em 2008, o aumento foi de 80%. Seu líder nacional, o governador de Pernambuco Eduardo Campos, tem um claro projeto à Presidência. O cenário é favorável a ele?
Rennó: Dilma, para se reeleger, terá de lidar com um cenário muito mais complexo, devido à crise internacional. Isso afeta capacidade de investimento e pode reduzir a satisfação do eleitor com o governo. Em todas as eleições recentes, tivemos uma terceira força que emerge no ciclo eleitoral com 15% dos votos. O problema destas alternativas é que elas foram construídas todas em cima da hora. A movimentação que se vê agora é diferente. É a construção de uma terceira via moderada, de esquerda, que está sendo feita dentro da base, com muito cuidado.

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