sábado, 23 de junho de 2012

Paraguai, paraíso do Estado mínimo, artigo de César Felício



Com uma população de 6,3 milhões de habitantes e um PIB cem vezes menor que o brasileiro, o Paraguai está habituado a viver suas tragédias de forma subterrânea, longe das atenções mundiais. Dificilmente o desastre ocorrido na sexta-feira, em Curuguaty, próximo da fronteira com o Brasil, fugirá dessa regra. O episódio em que morreram 18 pessoas, sendo 11 militantes sem terra e sete policiais, merecia um destino diferente do esquecimento. Serviria como advertência do que pode ocorrer quando se entrecruzam concentração de renda e um Estado débil.
Na manhã de sexta-feira, o grupo especial de operações da polícia paraguaia, uma espécie de Bope local, foi deslocado para a fazenda de um ex-senador do Partido Colorado, Blás Riquelme. A propriedade está ocupada há alguns anos por cerca de 500 famílias. Foram recebidos à bala e devolveram o fogo. Entre os mortos, estava o comandante do grupo policial. O confronto gerou uma crise institucional: caiu o ministro do Interior e o chefe da polícia, a oposição tenta articular um pedido de impeachment contra o presidente Fernando Lugo e os ruralistas irão promover um “tratoraço” na segunda-feira.
Liderança histórica na área de direitos humanos do país, o advogado Martín Almada lembra que a tragédia de Curuguaty faz parte da herança que o país recebeu da ditadura de Alfredo Stroessner (1954-1989). O ditador, que morreu exilado no Brasil em 2006, estruturou seu poder distribuindo terras fiscais do Estado de maneira discricionária, gerando um caos fundiário. A prática continuou, em menor escala, nos governos seguintes, até 2003.
Fez parte desta indústria de transações escusas a titularidade de 7,851 milhões de hectares, ou 64% do total adjudicado em 50 anos. Dentro deste universo, foram beneficiados milhares de brasileiros que tornaram-se produtores de soja no Paraguai em circunstâncias pouco transparentes.
“É neste contexto que a propriedade de Riquelme se situa”, afirma Almada. O que aconteceu no Paraguai foi uma reforma agrária às avessas: em 1991, 1,5% dos proprietários controlavam 81,3% da superfície. Com o advento da soja, a concentração não diminuiu. Segundo dados da coordenadoria nacional de direitos humanos do Paraguai, em 2008 2% das propriedades somavam 78% das terras.
A soja e o gado empurraram o Paraguai adiante, e o país chegou a registrar taxas chinesas de crescimento, como os 15,4% de expansão do PIB em 2010. Os dólares entraram no país, mas não nos cofres públicos: o Paraguai é o paraíso do Estado mínimo. Segundo dados do Banco Central local, a carga tributária atual é de 13% sobre o PIB, a mais baixa da América do Sul. O imposto de renda da pessoa jurídica só foi criado em 2004. O de pessoa física, a depender do Congresso, só começará a ser cobrado a partir do próximo ano.
No Paraguai, o Estado provedor não existe. As pessoas estão habituadas a cada um cuidar de si. De acordo com um levantamento da Cepal divulgado no ano passado, 69% dos lares paraguaios não contam atualmente com nenhum mecanismo de proteção social, nem mesmo de previdência contributiva. É o mais alto percentual entre os 13 países pesquisados, em uma pesquisa que não inclui o Brasil. Um terço da população está abaixo da linha de pobreza.
Foi neste contexto que o então bispo católico Fernando Lugo iniciou a irresistível arrancada que o levaria à Presidência em 2008. Sem estrutura partidária, ganhou ao catalisar as esperanças de desenvolvimento social e reforma agrária, tema de não pouca importância em um país com 40% da população no campo.
Em seus quatro anos de governo, o resultado da gestão de Lugo parece apagado. O presidente tornou-se foco de atenções por suas vicissitudes pessoais, como filhos do tempo de celibato reconhecidos tardiamente e a batalha contra um linfoma. Seu maior sucesso administrativo foi conseguir do Brasil a renegociação da venda da energia elétrica de Itaipu. O aumento de 200% na energia gerada pelo Paraguai por si só representou um acréscimo de 1% no PIB local. Do ponto de vista político, disciplinou o Exército, ao reformular a cúpula da instituição.
Sem maioria no Congresso, Lugo viu o seu projeto paraguaio de Bolsa Família, o “Tekoporá”, ser podado pelo Legislativo. O programa pagava 83 mil benefícios em 2011, muito aquém do que se previa. A estratégia de tocar um programa de reforma agrária com a compra de terras não funcionou. Os conflitos rurais, que caíram entre 2008 e 2010, voltaram a crescer no ano passado. Sem ter o que oferecer aos movimentos organizados, Lugo não os atende e não os reprime.
A anemia do Estado no Paraguai faz com que o poder público vá perdendo o seu poder mediador em meio a conflitos. É uma tendência que tende a se agravar, segundo Almada. “Lugo parece temer o mesmo destino que Manuel Zelaya teve em Honduras, que caiu em 2009 em um golpe patrocinado pelas forças políticas”, comentou.
Para os próximos anos, na opinião de Almada, episódios de violência devem se repetir. “A pobreza no Paraguai é explosiva”, comentou. O esgarçamento institucional em um país com uma fronteira terrestre notoriamente de baixo controle policial com o Brasil não deve ser uma questão menor para Brasília.
Um incipiente movimento insurgente, o Exército do Povo Paraguaio, tenta se estruturar desde o governo anterior a Lugo. Sua cúpula está presa, mas o governo não conseguiu romper a cadeia de comando da organização. De acordo com o que o próprio adido da Polícia Federal no Paraguai afirmou no ano passado, as principais organizações criminosas brasileiras estão presentes no país vizinho.
Não há qualquer evidência de que a ponta mais radicalizada da insurgência paraguaia se conectou com o submundo brasileiro, mas cabe em relação a esta hipótese funesta lembrar a frase do escritor francês Victor Hugo: “Nada é mais poderoso quando a uma ideia chega seu tempo”.
César Felício é correspondente em Buenos Aires. Escreve mensalmente às quintas-feiras

Nenhum comentário: