quinta-feira, 17 de janeiro de 2013

O impacto do fordismo lulista na estrutura da sociedade brasileira

Socializo, abaixo, o início do terceiro capítulo do ensaio que estou redigindo sobre o fordismo lulista.


3. Sociedade fragmentada

 O fordismo brasileiro formulado pelo lulismo é tardio. Não ocorre nas condições de consolidação da sociedade de massas dos EUA (no período 1930-1950) e muito menos da Europa do pós-guerra.
O modelo societário imposto pelo fordismo europeu foi fortemente influenciado pelos partidos modernos, de massa e operários, que se inscrevem na lógica política do século XIX e que desaguam, já na segunda metade do século XX, no modelo neocorporativo. Trata-se da inclusão das estruturas sindicais superiores (centrais sindicais, federações e sindicatos nacionais) em arenas de negociação e elaboração da agenda nacional, forjando mecanismos institucionalizados de participação na tomada de decisões governamentais. O neocorporativismo foi além desta mera participação na tomada de decisões e avançou sobre um modelo peculiar de cogestão pública, uma coalizão governista de alta complexidade. Em outras palavras, o fordismo europeu incorporou interesses organizados ao processo político-estatal. Na definição original de Philippe Schmitter [1], o neocorporativismo forja um sistema de representação de interesses estruturada em um número limitado de categorias não competitivas, reconhecidas pelo Estado, conferindo o monopólio da representação. Constitui-se, assim, uma elite política nacional que estrutura o corporativismo estatal[2]. Algo que supera as negociações de interesses setoriais. Um modelo tipicamente social-democrata, bem sucedido nos países escandinavos e na Alemanha, dirigido pela hegemonia conquistada  nos parlamentos, mas também envolvendo a Áustria, Holanda e Bélgica num modelo similiar, mas que não dependeu da hegemonia socialdemocrata no parlamento[3]. Com a precarização dos direitos trabalhistas e a desestruturação do Estado de Bem-Estar Social europeu, Cawson[4] sustenta que o neocorporativismo clássico fundado na cooperação entre interesses a partir da tutela do Estado (também denominado pelo autor de “macrocorporativismo” por tratar da agenda nacional), foi substituído pelo mesocorporativismo, fundindo processos intermediários de interesses (agenda restrita).
Ocorre que no Brasil, a ascensão do fordismo lulista é arquitetado justamente num período de superação da agenda minimalista (neoliberal ou gerencial, onde os objetivos e lógica de gestão empresarial são absorvidas pelos gestores estatais) e reintrodução da cartilha keynesiana de ações anticíclicas. O que interessa a este ensaio é observar que a forte influência do sindicalismo europeu sobre o ideário lulista acaba por recriar o neocorporativismo europeu sob uma roupagem inusitada, criando uma sociedade política dual[5], onde a representação sindical e corporativa de maneira geral não se articula necessariamente com a cultura fragmentada da sociedade civil do período. Neste sentido, o fordismo tardio brasileiro acomoda a estrutura política neocorporativa à fragmentação societária hipermoderna ou individualista.
O fordismo norte-americano, por seu turno, adota a lógica societária que, sugiro, se aproxima do outro polo do fordismo tardio brasileiro.
A sociedade norte-americana é marcada pelo individualismo, pelo pragmatismo e pelo antiestatismo. Muitos autores clássicos destacaram este ideário societal, de Tocqueville a Max Weber, passando por Karl Marx e Leon Trotsky. A ausência de resíduos feudais, o individualismo representado na ampla classe média, o nível salarial acima do europeu e o papel da ética do trabalho (e consumo) como resultado do protestantismo se aliaram à desconfiança em relação ao poder central dos fundadores da nação e formuladores da Constituição Federal. O federalismo estadunidense funda-se em contrapesos que procuram diluir o poder central como lócus da regulação social. Um ideário que se espraiou sobre organizações da sociedade civil, partidos políticos e sindicatos.
Os partidos de trabalhadores norte-americanos apoiaram-se numa agenda que reivindicava mais o igualitarismo fundado num sistema universal de educação de massas que na luta de classes ou conflito por interesses de classe[6]. Não se tratava de igualitarismo em função da renda, mas da “garantia de barganha competitiva dentro do capitalismo”[7].
As organizações sindicais mais combativas eram anarquistas e se apoiavam em forte preservação do indivíduo e total estranhamento em relação às instituições públicas. Lideranças sociais também desconfiavam do ideário da esquerda europeia. Nos anos 1960, o movimento libertário liderado por jovens (e suas organizações, como a Students for a Democratic Society) criticava acidamente tanto a socialdemocracia (estruturada a partir da hipertrofia da burocracia estatal) e o stalinismo estatal. O ideário libertário transitava entre o anarquismo, o pacifismo e o radicalismo democrático que, no caso, significava a garantia da liberdade individual e a limitação do controle das instituições de representação (e até das comunidades) sobre a autonomia dos indivíduos.


[1] O autor desenvolveu o conceito ao longo dos anos 1970. Ver SCHMITTER, Philippe C., Interest conflict and political change in Brazil. Stanford, Stanford University Press, 1971; e "Still the century of corporatism?", ira P. C. Schmitter. & G. Lembruch (eds.), Trend toward corporatist intermediation. Beverly Hills & Londres, Sage Publications, 1979.
[2] Segundo Schmitter, ao contrário do corporativismo societal, cujas demandas endereçadas ao Estado não afetam a autonomia e independência dos atores sociais, o corporativismo estatal tem no Estado seu protagonista, absorvendo, arbitrando e domesticando os atores envolvidos no processo de construção e gestão de políticas públicas. O arbítrio e domesticação como ação estatal aparecem como formulação teórica nos estudos de Lehmbruch, como intermediação, que se aproxima mais do projeto lulista. Ver LEMBRUCH, G. “Concertation and the structure of corporatist networks“, In GOLDTHORPE. J. H. (org.). Order and conflitct in contemporary capitalism. Oxford University Press, 1988.
[3] Ver Keller, Wilma. “Neocorporativismo e Trabalho: a experiência brasileira recente”, In São Paulo em Perspectiva, São Paulo, Fundação SEADE, 9 (4), 1995, páginas 73 a 76.
[4] Ver CAWSON, A. “Varieties of corporatism: the importance of the meso level of interest intermediation”. In CAWSON, A. (org.) Organizized interests and the state: studies in meso-corporatism. London, Sage Publications, 1986.
[5] Conceito já explicitado na introdução deste ensaio.
[6] Ver LIPSET, Seymour Martin & MARKS, Gary. Por que não vingou? História do socialismo nos Estados Unidos. Brasília, Instituto Teotônio Vilela, 2000, p. 20 e seguintes.
[7] LIPSET, Seymour Martin & MARKS, Gary, op. cit., p. 21.

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