domingo, 2 de junho de 2013

Fim dos "ismos" ou justamente o contrário?

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Li o artigo que reproduzo logo abaixo escrito por José de Souza Martins. Li e reli. Martins sugere que o tempo dos "ismos" (chavismo, lulismo e outros) estaria no fim. Sugere que são populismos que teriam seus dias contados.
Contudo, o artigo não apresenta um fundamento para esta conclusão que parece um desejo, não uma análise. Haveria uma possibilidade de Martins estar certo se tivéssemos ingressado numa outra estrutura organizacional. Uma possibilidade seria uma forma de sociabilidade em rede, fragmentada, mas que se articularia em alguns momentos chaves, por adesão individual e não por identidade com uma organização ou líder. A figura central de uma liderança carismática, nesta lógica, não teria sentido justamente porque a repercussão da liderança enseja unidade, massa que mantém forte relação emocional com a figura paternal.
Mas esta é uma possibilidade ainda remota, embora tenhamos visto situações recentes, como a Primavera Árabe, que anunciam algo deste gênero.
O Brasil, contudo, é todo determinado pela ação central e demiúrgica do Estado. Martins tenta remar contra os fatos. O bolsa família, a ação do BNDES, o papel do BC, as articulações e negociações no bloco que forma a coalizão presidencialista, o neocorporativismo sindical (que atua nos mercados, via fundos de pensão, que comanda agências reguladoras e participa de conselhos de estatais), a sobrevivência de ongs e organizações populares a partir de convênios com o Estado, e até mesmo a nova dimensão política (e catalisadora) do STF, tudo leva a crer que este poder central vai continuar alimentando uma forte dependência simbólica de nossa população em relação a uma figura paternal. Não necessariamente um populismo, que na literatura clássica, sugere uma liderança que não se relaciona com as estruturas de representação, mas propõe um discurso direto com as massas. Não é o caso do lulismo porque ele assimila as organizações de representação e as de mediação social. Portanto, é algo mais complexo que populismo.
Martins, enfim, parece confundir seu desejo pessoal com análise da dinâmica política real do nosso país.
Aliás, Marcos Nobre, da UNICAMP, lançará em breve um livro sobre outro "ismo": o peemedebismo. Nobre sugere que o lulismo e até Aécio são subprodutos do peemedebismo. O ciclo está apenas se iniciando. Não está, nem de longe, no seu fim.
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JOSÉ DE SOUZA MARTINS*
Os “ismos” políticos têm sido comuns na América Latina: peronismo na Argentina, getulismo no Brasil, priismo no México. Designam momentos. Manifestações de populismo, que, nos tempos da Segunda Guerra Mundial eram a forma limitada de participação do povo no processo político. O oposto dos tempos da dominação oligárquica, da cidadania seletiva e restrita. Os trabalhadores atravessariam ainda os tempos da guerra fria cerceados nessa forma limitada de manifestação política, expressando-se na palavra de quem trabalhador não era, os burocratas da intermediação política e sindical.
Quando terminou a guerra fria, com o fim da União Soviética, a América Latina se viu politicamente enriquecida pela ascensão de partidos e grupos políticos que expressavam acima de tudo o querer de populações socialmente residuais. As que não dispuseram antes de canais próprios de expressão da vontade política. Eram aqueles grupos cujas carências não tinham tido abrigo na polarização artificial do pós-guerra, transformados agora em novos e diferentes sujeitos do processo político. Mas sujeitos estranhos aos quadros ideológicos e teóricos da política. A era pós-ditatorial, aquela que se seguiu às ditaduras militares dos anos 70 e 80, abriu, primeiramente, espaço para partidos de conformação europeizada e de ideologia mais ou menos social-democrática, modernizantes. Chegaram ao poder em diferentes países com a missão histórica de trazê-los para o mundo moderno, para os valores universais da cidadania, dos direitos sociais e dos direitos individuais. Cometerem, porém, o erro de ignorar aqueles grupos residuais e suas carências pré-modernas, seu modo comunitário de viver, sua mentalidade pré-política, sua ação política por meio dos movimentos sociais, o poderoso ativismo de seu atraso social e político. É verdade que, na perspectiva modernizante, não havia como conciliar a ideia de missão civilizadora com o tradicionalismo dos grupos humanos retardatários da história e confinados nas graves limitações de compreensão das mudanças e sua aceitação.
Os supostos representantes da civilização não conseguiram incorporar ao seu projeto político os supostos representantes da barbárie, uma polarização clássica dos dilemas latinoamericanos. E vice-versa. Há cerca de dez anos, participei em São Paulo de um encontro de ex-presidentes de repúblicas latinoamericanas que passaram por essa experiência e fizeram tardiamente a descoberta do erro cometido. Como ouvi de Carlos Mesa, da Bolívia, homem culto, com doutorado na França, filho de magistrado, que deixou a Presidência nos tumultos sociais que acabariam levando ao poder Evo Morales, representante dos cocaleiros. Expressão do politicamente improvável, se vista na perspectiva das grandes tradições políticas.
O caso de Lula não é diferente. Sua trajetória difere completamente das trajetórias políticas brasileiras. Não só porque se trata de um líder sindical operário, mas também porque chega ao poder apoiado na aglutinação de grupos políticos com visões de mundo e orientações ideológicas contraditórias e interesses e projetos políticos desencontrados e até antagônicos. É o que vai levar ao desastre do mensalão e ao divórcio do lulismo em relação ao petismo. Uma expressão da nova realidade social e política brasileira. Como não é diferente o caso de Lugo, no Paraguai, bispo católico, que teve que deixar o sacerdócio e acabou tendo que deixar o poder, numa trajetória pouco republicana e até mesmo pouco política.
Cada um desses grupos da nova era política definiu o seu “ismo”: chavismo, lulismo, luguismo, sandinismo, todos proclamando-se variantes do socialismo. É um novo populismo, diferente do populismo anterior porque já não tem como meta deixar-se manipular pelos políticos em troca de demandas sociais restritas. Diferente porque passou a querer o próprio poder. Essa mudança definiu uma era, que tem sido a era do ismismo, isto dos ismos referidos à invenção de heróis fundadores, como o Chavez do chavismo e o Lula do lulismo. Ou referidos a heróis míticos da memória nacional, como o Sandino do sandinismo ou José Martí, do socialismo cubano.
O ismismo pode estar chegando ao fim ou ao seu momento crítico justamente porque seus heróis não são imortais. Além do que, o carisma não é transferível, dizia Max Weber. O ismismo está nos hospitais e até nas UTIs, ou tem por eles passado com frequência, emblemáticos sinais de finitude: Fidel, Chavez, Lula, Dilma, o câncer cobrando seu tributo. Mas está também limitado pelos compromissos das políticas de coalizão e do poder compartilhado, mas corporativo. A visão política do mundo decorrente dessa politização fragmentária e personalista está contida no seu tênue discurso social, o da inclusão. Um discurso conservador que é também a nova expressão do capitalismo subdesenvolvido e terceiro-mundista. Seu projeto histórico é apenas ou sobretudo incluir e integrar. Não se trata de superar e de transformar, mas de aderir.

* martins-joseJOSÉ DE SOUZA MARTINS é sociólogo e Professor Emérito da Faculdade de Filosofia da USP. Dentre outros livros, é autor deExclusão Social e a Nova Desigualdade (Paulus, 2012); Reforma Agrária: o Impossível Diálogo (Edusp, 2002); A Sociedade Vista do Abismo – Novos estudos sobre exclusão, pobreza e classes sociais, (Vozes,  2012); A Política do Brasil Lúmpen e Místico (Contexto, 2012). Publicado em O Estado de S. Paulo [Caderno Aliás, A Semana Revista], Domingo, 13 de janeiro de 2013, p. J7.

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