terça-feira, 18 de fevereiro de 2014

Relato de um Perplexo

Relato de um perplexo

18/02/2014
Por Rudá Ricci


Por Rudá Ricci, para o dossiê UniNômade sobre as manifestações
“A leitura das planilhas eliminou a capacidade de ler as ruas.”
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As manifestações de junho já haviam mostrado sua cara. Mas a surpresa continuava. Ao menos, para grande parte da grande imprensa e para os políticos profissionais. Sem contar os gestores públicos que formam a pior geração de toda a história republicana de nosso país.
A geração tecnocrática não tem na sua memória o papel do governante como liderança. Acreditou no discurso do empresariamento da gestão pública, tão disseminada ao longo dos anos 1990. O século virou, mas a crença foi reproduzindo-se, embora não publicamente, como conviria às decisões e pensamentos privados, mas sim nos seminários fechados, quase clandestinos, nos cursos do estilo MBA. O pensamento único de empresariamento da gestão pública invadiu quase todo o sistema partidário brasileiro, como uma senha ao bom senso. Uma “boa prática”, ainda que a população não tenha sido consultada para dar sua opinião. Porque no mundo tecnocrático, pouco importa o que os “de baixo” pensam, quase sempre desqualificadas como opiniões apaixonadas e pouco lúcidas.
O gestor tecnocrático é destituído de faro político. Não sabe negociar o que, aliás, é visto como perda de tempo até justificável, mas perda de tempo. O eixo da atuação é o Power Point que sintetiza o planejamento estratégico. Planejamento normativo, que dispara um alerta quando as metas não são alcançadas. A leitura das planilhas eliminou a capacidade de ler as ruas. Neste mundo apartado das ruas, onde o eleito ganhou a licença para tudo após a contagem dos votos da última eleição (o bom e descompromissado líder fiduciário), qualquer agitação que se insurja do lado de fora das janelas gera perplexidade. “Não era para acontecer”, imaginam os tecnocratas. Os mais lúcidos gestores desta nova geração afirmam, também perplexos: “são ingratos”. Porque não há outra resposta para quem não sentiu o pulsar das ruas durante meses. Tudo deveria ser resolvido nos gabinetes. Mas não foi.
Mas aí, o Ministro da Justiça convoca, no finalzinho de outubro, uma reunião com Secretários Estaduais da Segurança Pública para uma conversa sobre o vandalismo que estaria tomando as manifestações populares. O ministro adiantou: “manifestantes pacíficos podem se manifestar, mas os vândalos terão outro tratamento”. A questão que ficava para cada cidadão descrente no discurso político era: como diferenciar um do outro? Se é possível distingui-los, porque a inteligência policial já não resolve isto antes da manifestação dar lugar ao vandalismo? Não, ministro, seu discurso não convenceu.
Tudo ficou ainda mais nebuloso quando Humberto Freire, coordenador da Secretaria Extraordinária de Segurança para Grandes Eventos (Sesge), do Ministério da Justiça, veio à público para informar que não estaria descartada a convocação das Forças Armadas e da Força Nacional de Segurança para atuar durante a Copa do Mundo, logo no início de janeiro de 2014.
Em seguida, foi divulgado o teor do Manual de Garantia da Lei e da Ordem, elaborado pelo Ministério da Defesa. A aprovação do material consta na Portaria Normativa n.º 3.461, publicada no Diário Oficial da União e passou a ter validade a partir de 20 de dezembro de 2013. Um manual de emprego da força em situações extraordinárias. Anunciado como operação militar conduzida pelas Forças Armadas em área previamente estabelecida e por tempo limitado com o objetivo de preservar a ordem pública. Podendo ocorrer por iniciativa própria da Presidente da República ou em atendimento a pedido manifestado por quaisquer dos poderes constitucionais. Ao longo do documento emergem vários riscos à democracia. O item 4.3, trata das “forças oponentes”. Logo de início, o item indica que não se trata de caracterizar um “inimigo” (na forma clássica das operações militares, complementa), mas caracterizar as forças que deverão ser objeto de atenção. Novamente, o fio da navalha, algo que se diz sem falar. Como forças oponentes, o documento indica: a) movimentos ou organizações; b) organizações criminosas, quadrilhas de traficantes de drogas, contrabandistas de armas e munições, grupos armados etc; c) pessoas, grupos de pessoas ou organizações atuando na forma de segmentos autônomos ou infiltrados em movimentos, entidades, instituições, organizações provocando ou instigando ações radicais e violentas; e d) indivíduos ou grupo que se utilizam de métodos violentos para a imposição da vontade própria em função da ausência das forças de segurança pública policial.
Ora, como movimentos ou organizações podem ser incluídos no mesmo rol de forças oponentes que organizações criminosas? A dúvida é pertinente porque à página 63 do Manual, a síntese deste item é ainda mais reveladora. Está lá:
“4. FORÇAS OPONENTES. 4.1. São segmentos autônomos ou infiltrados em movimentos sociais, entidades, instituições, e/ou organizações não governamentais que poderão comprometer a ordem pública ou até mesmo a ordem interna do País, utilizando procedimentos ilegais. (grifo de minha autoria).
O ANEXO G (CONTROLE DE DISTÚRBIOS EM AMBIENTE URBANO) ao Plano Operacional, inscrito no Manual à página 65 é ainda mais revelador. No item “cenário” destaca:
1. CENÁRIO. Atuação de elementos integrantes de movimentos sociais reivindicatórios, de oposição ou protesto, comprometendo a ordem pública.”
 Ficamos à mercê da identificação e discernimento da autoridade pública de plantão para diferenciar o que são elementos integrantes infiltrados dos manifestantes e componentes de movimentos sociais. Ingressamos no alto risco de todo manifestante ser um potencial inimigo da ordem social. O que nos remete às leis de exceção do regime militar.
Quando tudo parecia uma obra inédita de George Orwell, a ofensiva da base governista após a trágica morte do cinegrafista Santiago Andrade, durante manifestação no centro do Rio de Janeiro, em 06 de fevereiro, nos sacode outra vez. O projeto de lei, que no Senado recebeu o número 499/2013, foi proposto por uma comissão parlamentar mista criada para consolidar várias leis em um único projeto. O senador petista Paulo Paim, que havia pedido análise do projeto por entender que poderia infundir terror ou pânico generalizado, perdeu o bom senso e afirmou no dia 10 de fevereiro:
“Mediante o acontecido com o cinegrafista, que foi covardemente assassinado, acredito que o Senado tem que responder, não só para esse fato, mas para alguns que já aconteceram e outros que vão acontecer se nada for feito. Por isso, estou disposto a retirar o requerimento e fazer o debate que faríamos na CDH”.
Foi acompanhado pelo senador Jorge Viana (PT-AC) que afirmou ser possível aprovar o projeto em regime de urgência.
Pressa que mereceu repreensão da direção nacional do Partido dos Trabalhadores. Em nota pública, a direção do partido ao qual a Presidente da República é filiada sustentou:
“O Partido dos Trabalhadores acompanha com atenção os debates no Congresso Nacional sobre a adoção de uma legislação antiterror, especificamente no cenário das manifestações que têm ocorrido no País. Entretanto, o PT não pode aceitar qualquer texto legal que não tipifique – com clareza, objetividade e precisão – crimes eventualmente ocorridos no contexto dessas manifestações. Uma lei vaga nessa caracterização penal atenta contra os direitos e garantias fundamentais previstos na Constituição e poderia servir à criminalização de movimentos sociais, o que seria um inaceitável retrocesso democrático. Em que pese nenhum parlamentar seu estar ligado à autoria de projetos dessa natureza, o PT acha que o Brasil precisa aperfeiçoar seus textos legais com vista a ter dispositivos cíveis e penais que coíbam atos contra o patrimônio público, o patrimônio privado e, principalmente, a integridade das pessoas, provocados por aqueles que se aproveitam de legítimas manifestações populares para cometer ações de violência. Com a proximidade da Copa, a sociedade brasileira exige segurança para exercer seus direitos de liberdade de expressão, de pensamento e de reunião. O Poder Público necessita de um marco legal atualizado para lidar com novas situações que ocorram nesses eventos. Por isso, o PT tem orientado seus parlamentares a terem o máximo cuidado com projetos dessa natureza para que uma lei em defesa da sociedade não se transforme em lei contra a sociedade.” –  Rui Falcão, Presidente nacional do PT.
 O que, afinal, ocorre? A sequência de fatos não sugere pânico do governo que dirige o país?
Afinal, algo de muito estranho parece contradizer toda história do partido governista e seus dirigentes.
Com o advento do AI-5, a própria Presidente da República e vários de seus colaboradores não recuaram, como parecem acreditar, agora, que ocorrerá com o Manual de Garantia da Lei e da Ordem e a proposta de lei 499/2013. Ao contrário, vários pegaram em armas. O que levaria esses personagens, tendo passado por este itinerário político, acreditarem que esta reação geraria um resultado eficaz ou apaziguador?
Mais: a figura máxima do petismo, o ex-Presidente Lula, foi líder das maiores manifestações urbanas ao longo dos anos 1980 e parte dos 1990. Foi preso por liderar uma imensa greve de metalúrgicos. Liderou a rejeição da eleição indireta de Tancredo Neves e era dirigente do PT quando seu partido decidiu bradar o slogan “Fora FHC”.
A motivação seria a contaminação do processo eleitoral de outubro pelas manifestações que se avizinham em protesto aos gastos públicos e efeitos sociais com a Copa do Mundo? Se for, não seria uma declaração de perda de controle das ruas ou de transformação de uma rica história de lutas sociais e protestos de rua em paranoia conservadora?
Continuo perplexo. O último semestre revelou a cara do novo Brasil. Aquele que apareceu nas manifestações de junho e aquele dos rolezinhos. De dezembro de 2013 a fevereiro deste ano, foi a vez do governo petista se revelar. E, com ele, grande parte de seus dirigentes.
Continuo perplexo.
Rudá Ricci é sociólogo, doutor em ciências sociais (Unicamp), diretor do Instituto Cultiva. Autor de “Lulismo” (Editora Contraponto, sobre os oito anos de governo Lula) e “Nas Ruas” (Editora Letramento, sobre as manifestações de junho de 2013).

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