sábado, 15 de março de 2014

Apontamentos sobre o Anteprojeto da DS para sua XI Conferência Nacional.

O foco eleitoreiro cria um mundo dicotômico

POR Rudá Ricci

Recebo o anteprojeto de resolução da Conferência Nacional da Democracia Socialista, possivelmente a tendência interna do PT com maior capacidade de formulação política. Por este motivo, este documento orienta uma leitura mais complexa dos cenários e estratégias (e até mesmo o ideário) do partido que governo o Brasil há doze anos.
O que surpreende no texto é o fim da dialética como orientação metodológica para análise da realidade para uma corrente fundada na tradição marxista, mais precisamente, trotskista. A hipótese que parece mais plausível para esta mudança interpretativa é o foco nas eleições e manutenção do governo federal, o que subordina todas outras dimensões da vida social, cultural e política a esta singela meta política. Para dar um tom épico a esta disputa pelo voto, o documento procura valorizar um conceito frágil de “revolução democrática”, algo que estaria em curso em nosso país desde a primeira vitória de Lula.
O interessante é que ao longo do referido documento, toda agenda sugerida como eixo central desta revolução em curso foi absolutamente abandonada pelo governo Lula desde seu primeiro ano, em 2003. O documento se revela, assim, um exercício de contorcionismo programático e interpretativo da maior relevância porque sugere as dificuldades para militantes históricos e sinceros do PT em se encontrar em meio à terceira via que se instalou no governo federal.
O documento começa pela análise da conjuntura internacional. Sustenta que o neoliberalismo ingressou, desde 2008, numa profunda crise, embora a expressão concreta desta crise seja relativa em algumas regiões, diferenciando-se ao longo do planeta. O significativo da análise feita nesta primeira parte do documento é a constatação que tanto o movimento sindical como os partidos de esquerda não conseguiram levantar resistências significativas ao projeto conservador. Fica, contudo, a lacuna sobre os motivos para esta ausência ou incapacidade das estruturas de representação clássicas. A lacuna é extremamente relevante porque joga na penumbra o que poderia ser uma importante crítica sobre a agenda ou até mesmo estrutura organizacional destas instituições políticas. Não aprofundando, o documento abre espaço para a proposição que fará mais adiante sobre o cenário nacional. Mas, ainda na análise do cenário internacional, o documento da DS sugere que a América Latina, “especialmente a do Sul”, continua sendo o território de avanços alternativos ao neoliberalismo. Aqui começa a redução do mundo político às duas possibilidades, transformando análise e disputa política numa expressão raquítica da vida social. Não há uma linha sequer para diferenciar o campo geopolítico do chavismo daquele que Lula tentou construir e que Dilma Rousseff abandonou. Indiretamente o documento sugere uma linha de continuidade que efetivamente não existiu. O lulismo disputou, efetivamente, a América Latina com Chavez. Foram dois projetos distintos que traduziam trajetórias pessoais antagônicas das duas lideranças: a militar e a sindical. Dilma, por seu turno, optou pela orientação administrativista (ou gerencial), de natureza mais técnica, nas ações diplomáticas o que, por sinal, se expressou na troca do perfil do chanceler brasileiro.
Esta primeira parte do documento da DS termina sugerindo que não há alternativa capitalista de superação da crise econômica. Porém, a esquerda mundial encontra-se sob pressão do capital internacional. O que poderia explicar a emergência de movimentos de contestação popular, de inspiração neonazista ou anarquista, em grande parte da Europa. Mas o documento, mais uma vez, se omite em relação às dificuldades da esquerda clássica (tanto sindical, quanto partidária) em se apresentar como alternativa ou mesmo como polo de reflexão sobre uma agenda de mudanças econômicas, políticas e sociais. Daí, no item 14, o documento da DS tatear uma explicação que começa assim: “talvez possa se falar em um cenário instável e polarizado pela direita da crise do neoliberalismo”. Uma redação evidentemente insegura ou excessivamente cautelosa que, nas entrelinhas, se apoia na inexistência do protagonismo da esquerda clássica.
No item 16 do documento da DS, contudo, é apresentado um esboço de estratégia ao sugerir os partidos institucionalizados aferrados às regras do jogo, o que aponta para a alternativa da adoção de formas de democracia direta e participativa e maior capilaridade dos partidos nos movimentos sociais. Também sugere, no item seguinte, a “profunda erosão dos valores e tradições socialistas e do mundo do trabalho”. Ora, esta poderia ser a agenda para a esquerda brasileira, mas, como se verá adiante, é exatamente o inverso do que o documento aponta efetivamente.  
As dificuldades interpretativas, contudo, emergem quando o documento se debruça sobre o cenário nacional. O primeiro erro grosseiro é denominar o momento atual pelo que o Brasil passa de “revolução democrática”. O conceito é impressionista e carece de qualquer profundidade analítica. Revolução, tal como sustentou em inúmeros estudos por Florestan Fernandes, é processo de transformação da ordem social. Ora, os governos lulistas criaram um potente mercado consumidor interno e redefiniram o papel orientador do Estado nacional. Mas, nem de longe,  apontou uma mudança na ordem social e política. Ao contrário, trata-se da adoção da agenda rooseveltiana, tal como sugere André Singer num dos capítulos de seu “Os Sentidos do Lulismo” e também desenvolvido em meu livro “Lulismo”. A melhor tradução da agenda lulista é a formatação de um pacto desenvolvimentista, anos luz de qualquer processo revolucionário. Um exagero semântico que a DS terá dificuldades para justificar e emprega-lo na luta política concreta. Porque se houve abortos nítidos que geraram defecções importantes nos dois governos de Lula tiveram como motivação a política econômica focada no apoio ao grande capital, na marginalização da agenda do desenvolvimento sustentável e reforma agrária e, principalmente, na rejeição a qualquer mecanismo concreto de controle social sobre o Estado. A agenda rooseveltiana é conservadora do ponto de vista político, mas progressista em termos de ganhos sociais, além de orientada para a hipertrofia do Estado. Não há nada, contudo, que quebre a lógica sistêmica da ordem vigente.
Tal conceito, afoito ou desprovido de fundamento real, traveste a polarização eleitoral em polarização ideológica. O que faz de toda manifestação de contestação uma reação conservadora ou irresponsável. Na melhor das hipóteses, um infantilismo esquerdista ou autoreferenciado.
Há dois momentos em que o documento aponta para uma agenda do que seria tal revolução democrática. No item 21, indica:
Esta dinâmica de revolução democrática abre um novo período de mudanças estruturais no país, centralizadas por uma democratização qualitativa dos centros de poder. A democratização dos centros de poder do Estado – conjugando um novo quadro institucional das formas de representação e democracia participativa, de democratização do processo de formação da opinião pública, de fim da corrupção sistêmica, de avanços na Justiça de Transição e de superação das dimensões conservadoras das políticas de segurança pública – se associaria a um novo patamar de planejamento público e de políticas macroeconômicas, abrindo um período de universalização das políticas sociais e de desmercantilização dos bens necessários à reprodução da vida social formando um Estado alicerçado nos valores da solidariedade, do feminismo e da multi-etnicidade.
Mais adiante, no item 40, sugere:
É preciso pois disputar abertamente a legitimidade democrática do sentido e do aprofundamento das políticas econômicas anti-neoliberais que se afirmaram mais claramente a partir do fim do primeiro mandato do presidente Lula. A afirmação do planejamento democrático, da função decisiva do setor público como financiador, produtor e regulador, das medidas de combate aos poderes financeiros, das iniciativas de defesa dos direitos do trabalho e a ampliação das políticas sociais, da defesa da soberania nacional diante da pressão rentista internacional, da agricultura familiar e da reforma agrária são fundamentais para inverter um panorama político e comunicativo defensivo. Em terceiro lugar, há uma nítida diferença entre o sentido programático da reeleição de Dilma e a opção preferencial pela aliança com o PMDB, que no Congresso Nacional tem evidenciado e até aprofundado o seu atrelamento a posturas e interesses conservadores. Neste quadro, será decisivo a nitidez programática imprimida pelo PT e pelo PC do B e pelos setores mais progressistas da coalizão à candidatura Dilma Roussef, preparando inclusive um esforço de uma nova convergência política e social nos próximos anos.

Ora, uma leitura mais rigorosa daria conta para compreender que esta agenda é antagônica à entabulada pelo lulismo. Os dados são oficiais e demonstram nitidamente que a reforma agrária foi debelada como política pública estratégica em função da implantação do bolsa família. Já havia, anteriormente, a intenção de substituir esta agenda clássica da esquerda brasileira por territórios da cidadania. O fato é que as teses de José Graziano da Silva, ex-dirigente do programa Fome Zero e hoje comandante da FAO, tão disseminadas em meados dos anos 1980 sobre o anacronismo da reforma agrária como reforma econômica, deitaram raízes no programa lulista.
O planejamento democrático simplesmente não existiu nos últimos dez anos. Ao contrário, a participação de entidades de representação social em arenas oficiais desmantelaram as mediações destas organizações com as ruas. Convênios que terceirizaram serviços sociais públicos para ONGs, administração de fundos de pensão com o nítido foco em ganhos de dividendos (como aquisição de ações de indústria bélica e grandes bancos), participação de sindicalistas (com pagamentos de jetons pessoais) em conselhos de empresas estatais sem consulta às bases sindicais sobre pautas e prioridades, baixo impacto das dezenas de conferências nacionais de direitos, aborto do sistema de controle social sobre o Bolsa Família elaborado por Frei Betto e Ivo Poletto, assim como aborto do controle popular sobre a implantação do PPA federal (que foi timidamente esboçado em audiências públicas nas capitais durante 2003) são algumas situações que indicam os rumos concretos do processo de decisão governamental.
Por confundir intenção com gesto, o documento da DS incorre em passagens ufanistas, como se estivéssemos vivenciando no Brasil uma mudança de proporções regionais ou até mundiais. Um exagero que reforça a noção da disputa eleitoral ser mais importante que as demandas sociais expostas em conflitos de rua. A hipérbole literária pode ser verificada no item 20 do referido documento:
2002 marcou o início de um novo ciclo político do país, com a vitória de Lula em um quadro de forte chantagem dos capitais financeiros internacionais e das forças políticas neoliberais; 2006 foi fundamental para marcar a conquista de um segundo mandato Lula, após a grave crise de 2005, consolidando e legitimando uma inflexão à esquerda importante da legitimidade da luta contra os fundamentos neoliberais (nova orientação da política econômica desde o final de 2005, nova política do salário-mínimo, denúncia das privatizações no segundo turno, consolidação da legitimidade das novas políticas de inclusão social); 2010 foi uma clara manifestação do apoio à continuidade e aprofundamento das mudanças conquistadas nos governos Lula, a partir das respostas à esquerda diante dos novos desafios da crise econômica internacional de 2008, com a construção da liderança política de Dilma Roussef em meio a um quadro de forte acirramento da luta de classes a partir de uma contra-ofensiva político-midiático neoliberal e conservadora promovida pela candidatura Serra, principalmente a partir do final do primeiro turno.
Uma passagem do excerto destacado acima já possibilita desmontar a tese ufanista. Afinal, o que teria gerado “a grave crise de 2005”? Foi a ofensiva anti-lulista que procurava surfar na reação popular aos casos de corrupção instalados na Casa Civil. Lembremos que o caso cunhado como “mensalão” é posterior à crise iniciada com as movimentações de um assessor do ministro da Casa Civil. O fato é que Lula decidiu, a partir dali, reorientar suas políticas, até então desarticuladas, num formato clássico rooseveltiano. O eleitorado petista se altera desde então, como demonstram diversos estudos de análise eleitoral. Passou a se confundir com o eleitorado do PMDB, com menor renda e instrução. A ruptura com o Fome Zero, segundo o que Frei Betto registrou em livros, revelou um movimento do lulismo para acordos com a Ordem institucionalizada. Do controle social do programa através dos Talheres (denominação dada pelo Fome Zero às estruturas de gestão participativa), Lula optou pelo controle pelas prefeituras, o que foi duramente criticado por várias pastorais sociais envolvidas na criação da rede social de gestão participativa.
A política econômica também se radicalizou e a orientação para focalização das políticas sociais, tal como preconizava a Secretaria Nacional de Política Econômica do Ministério da Fazenda, passou a ser discurso único. A partir daí, a aliança com o PMDB e a formação de um amplo arco de acordos que forjou de vez a coalizão presidencialista feriu de morte o programa petista. Este que o documento da DS procura recuperar em parte.
Daí a necessidade de redigir frases de efeito como a que abre o item 19 do referido documento: “as eleições de 2014 devem ser analisadas como parte do longo ciclo de luta contra o neoliberalismo, que teve início em 1989”. O próprio documento já havia indicado que o neoliberalismo já não é mais hegemônico. Mas que a esquerda não consegue apresentar uma alternativa popular. E, ainda, que emergem daí, mobilizações de massa que trilham caminhos alternativos, do neofascismo europeu ao anarquismo ou autonomismo encontrados no Occupy norte-americano, nos Indignados espanhóis, na Revolução das Panelas da Islândia e até mesmo nas Assembleias Populares argentinas.
As eleições, enfim, se tornaram o último campo de batalha para uma esquerda acuada, sem musculatura, que vive às sombras de um governo de coalizão onde seu peso é quase imperceptível.
Como bem demonstra o final do documento, as alternativas eleitorais à Dilma Rousseff são insignificantes. Até o momento, a reeleição pode ocorrer no primeiro turno. Mas não é aí que está o risco ao lulismo. Está nas ruas. Algo que o documento da DS não consegue analisar profundamente. Porque seu foco é o campo institucional, a eleição e a tentativa de influência de um governo que se pauta pela reação, pela ausência de projeto estratégico nítido. O Mais Médicos surgiu como reação às ruas. A aliança com o PMDB como reação à ofensiva oposicionista em 2005. A proposta de plebiscito da reforma política como reação às manifestações de junho. Assim como a esdrúxula proposta de lei antiterror e leis que procuram coibir protestos de rua sob o pretexto de ameaça à ordem nacional.
O documento da DS peca porque não sabe como fazer ponte entre o governo que participa e as ruas, órfãs nos últimos dez anos.

O lugar da esquerda sempre foi as ruas. Mas a DS parece procurar uma outra via. 

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