terça-feira, 6 de maio de 2014

Vai ter Copa ou não vai? (artigo para a revista Em Debate, da UFMG)

Vai ter Copa ou não vai?
Rudá Ricci[1]
Há momentos em que aparentemente um país se desencontra. Poucos se entendem e tudo parece estranho. Normalmente, esta sensação ocorre em momentos de mudanças sociais significativas. Aliás, foi num momento desses que foi citada, pela primeira vez, a palavra sociologia, num seminário realizado em Paris, no apartamento de Auguste Comte. O pai da sociologia sugeria a criação de uma nova ciência que pudesse analisar friamente (o autor, na verdade, sugeriu com neutralidade) o que ocorria com a urbanização acelerada e a destruição de instituições tradicionais e mudanças contínuas na paisagem social que, segundo ele, tiveram início com a Revolução Francesa e o advento do que denominou de “filosofia negativista” (de negação do passado).
Exageros teóricos à parte, o Brasil parecia imerso num manto de prosperidade e mesmice até que, durante os preparativos das festas juninas, as ruas rugiram, tal como se projetavam nas janelas das classes mais abastadas das grandes cidades europeias do século XIX. Assim como Comte, Baudelaire, Poe e Engels, estamos nós aqui buscando entender o que faz as ruas serem tomadas por multidões e descobrir onde elas estavam, até então. Começamos a pesquisar e sair com nossas mochilas nas costas, nossos laptops e celulares, entrevistando, fotografando, investigando o novo. Começávamos a formar o quebra-cabeça quando explodem os rolezinhos. E o país mergulha outra vez na montanha russa.
O slogan “Não vai ter Copa” só tem impacto porque é verossímil. E só emerge como ameaça porque o país não é o mesmo de abril de 2013. Porque em maio do ano passado já havia algum sinal de tempestade nos céus do país. Um simples boato sobre o fim do Programa Bolsa Família provocou, em três dias, 920 mil beneficiários a enfrentar filas enormes e sacar o resto de dinheiro que tinham em suas contas. Novamente, a boataria para dar certo tem que ser verossímil. O que nos faz crer que os Comitês Populares da Copa (os doze enfeixados na Articulação Nacional dos Comitês, a ANCOP), que criaram o slogan no final de 2013, estão com ouvidos e olhos atentos. Com efeito, em abril deste ano, o Datafolha verificou que 55% dos brasileiros acreditavam que a Copa da FIFA trará prejuízos ao país. Algo inusitado no país do futebol.
O que teria ocorrido? A explicação está na profunda mobilidade social – num país que tradicionalmente não tem mobilidade entre classes – que acometeu o país nos últimos dez anos.
Muito se alardeou nos últimos anos sobre os 40 milhões de brasileiros que deixaram a margem da sociedade – viviam abaixo da linha da pobreza – para serem incluídos pelo consumo. Não foram incluídos pelos direitos ou pela política, o que geraria um efeito político e social distinto do que efetivamente ocorreu. Motivado pelo discurso otimista de Marcelo Neri, da FGV-RJ, projetou-se um país de classe média. O Brasil estaria vivenciando algo similar ao que teria ocorrido nos EUA na década de 1950. A leitura otimista dava conta da consolidação acelerada de um imenso mercado consumidor interno que sustentaria um círculo virtuoso social e economicamente. 2010 teria sido o ápice desta trajetória. O que não se disse é que vivíamos lastreados nos investimentos chineses. Segundo estudo da China Global Investment Tracker, o Brasil foi o principal beneficiário de investimentos chineses em 2010: US$ 13,7 bilhões, excluindo-se os títulos públicos e investimentos de menos de U$ 100 milhões. Para efeitos comparativos, Nigéria e Argentina receberam em torno de US$ 8 bilhões cada um da China em 2010; e EUA e Canadá, por volta de US$ 6 bilhões cada, de acordo com os números do levantamento. Em 2013, este volume se reduziu a 20%. E, pior, a China decidiu competir com o Brasil na venda de produtos à Argentina, o terceiro maior importador de produtos brasileiros (atrás de China e EUA).
O fato é que a inclusão pelo consumo logo revelaria as várias faces do Brasil.
A primeira, dos próprios beneficiários. A inclusão pelo direito, como a luta social organizada numa estrutura sindical ou num movimento social, fortalece o espírito coletivo e a noção de cidadania ativa. A inclusão pela política, derivada da conquista pelo voto ou pela militância partidária, também fortalece o espírito coletivo e as instituições de representação. Mas a inclusão pelo consumo deriva em dois comportamentos muito distintos. O primeiro, lastreado na noção de prestígio pelos bens adquiridos. Antes das manifestações de junho era senso comum análises de mercado que definiam os novos ícones do prestígio social dos emergentes: smartphones, televisões de tela plana, viagens aéreas, aquisição de casa própria e reformas das cozinhas de seus domicílios. A inclusão pelo consumo aumenta o esforço familiar para não retornar ao estágio anterior e tentar progredir. No máximo, forma-se uma subcultura comunitária que reforça o interesse, mas se distancia da solidariedade da qual se alimenta o direito. Porque o direito é universal, mas o interesse é grupal. O segundo comportamento derivado é a dependência da ação estatal. Porque o Brasil não gerou mudança na qualidade do emprego e, portanto, continua empregando pessoas de baixa qualificação e praticando baixos salários. Para alimentar a euforia consumista, o Estado necessita manter as políticas sociais de promoção social. Ocorre que com a redução dos investimentos externos, em especial, chineses, o governo federal preferiu ampliar a base de beneficiados a criar nova geração de política de transferência de renda ou acompanhar as famílias já inseridas no amplo mercado consumidor.
Os rolezinhos foram, no início deste ano, a maior expressão deste segmento emergente pelo consumo. Formados por pré-adolescentes e adolescentes residentes nas periferias das capitais brasileiras (em especial, do eixo centro-sul), os rolezinhos projetaram a voraz ideologia consumista dos filhos daqueles que, anos atrás, saíram da pobreza absoluta para se sentirem dignos pela compra de produtos top de linha. O ambiente social desse grupo infanto-juvenil é, e sempre foi, o shopping center da periferia onde vivem. A segurança do ambiente lhes proporciona a condição básica para adquirir seus ícones de consumo, se alimentar e se divertir pelos corredores iluminados e cercados por um clima de excitação permanente, onde sempre é dia.
A reação das classes mais abastadas que se acostumaram à ausência de mobilidade social brasileira foi agressiva e imediata. Expuseram a cultura estamental que tolera o diferente desde que permaneça nos seus locais de origem. Os espaços demarcados pela diferença social foram revelados em poucos dias, em que a histeria dos adolescentes era condenada cruelmente pela histeria que tomou conta dos frequentadores dos centros comerciais de alto luxo, distantes dos centros da periferia que sediavam os encontros em massa dos jovens da periferia.
Enfim, o Estado Provedor, tal como se esboçou nos últimos dez anos, criou um país desencontrado, ou melhor, um país que foi obrigado a encarar seu reflexo no espelho. Um Estado que se legitima na medida em que mantém o sentimento de ascensão social, mas que se enreda na crise da economia internacional. Na outra ponta, uma sociedade historicamente engessada socialmente que estranha qualquer mudança social acelerada. Mudanças, afinal, que conspurcam os espaços determinados para o convívio de classes sociais distintas.
A situação parece ainda mais complexa quando se percebe que a rede de entidades de mediação social (ONGs, sindicatos e entidades confessionais) deixou de cumprir seu papel de colher demandas e frustrações difusas na base da sociedade e se caminharam para o envolvimento com arenas e convênios estatais. As ruas ficaram órfãs em meio à agitação social que se espraiou pelo país nos últimos anos.
Os protestos de junho, embora motivados e liderados por outro segmento da juventude brasileira (jovens de 20 a 30 anos, universitários, forjados nas comunidades fechadas das redes sociais), abriram as comportas para os “novos brasileiros” (os brasileiros da inclusão pelo consumo) se expressarem. Algo se quebrou na velha lógica do cinismo político das classes menos favorecidas. Algo os motivou a expressar mais claramente seus medos e ressentimentos e a desconfiar da tutela estatal. Um grito contido que anunciava que talvez fosse possível outra forma de relacionamento com o mundo político. Nada muito desenhado com precisão, mais uma queixa raivosa que uma solução.
Este é o cenário dos protestos que se avizinham. Um Estado acuado em país desencontrado.
O que é certo é que a Copa da FIFA já não será aquela planejada pelas elites desportivas e políticas. A seleção brasileira de futebol não será exatamente o Brasil de chuteiras. Os brasileiros parecem mais desconfiados, mais exigentes. Parecem relacionar os gastos com as obras de preparação do campeonato com o fim do clima de euforia consumista que tomou o Brasil em 2010.
Ocorrerão os jogos do campeonato da FIFA. Mas não será mais a Copa que um dia colocou 90 milhões de brasileiros em ação.



[1] Sociólogo, mestre em ciências políticas e doutor em ciências sociais. Diretor geral do Instituto Cultiva, membro do Fórum Brasil do Orçamento e do Observatório Internacional da Democracia Participativa. Autor, entre outros, de “Lulismo” (Fundação Astrojildo Pereira/Contraponto) e “Nas Ruas” (Letramento), este último dedicado à análise das manifestações de junho de 2013. E-mail: ruda@inet.com.br

2 comentários:

Rejane Cavalcanti disse...

Muito bom.

Fidelis disse...

Olá Ruda, blz!?
Só uma errata, o slogan "Não vai ter copa" não foi uma criação do Copac e nem da Ancop. O slogan do Copac-BH é:"A Fifa te fode" e da Ancop "Copa pra quem?"
O grito "não vai ter copa" surgiu nas ruas e em BH temos uma gravação do dia 22 de junho dos jovens gritando sem relação com os comitês, mas gritamos juntos. abç,
Fidélis